domingo, 18 de setembro de 2016

Lacraia, o poeta do Santa Cruz


Lacraia, no destaque

LACRAIA, O POETA DO SANTA CRUZ

Leonardo Dantas Silva

Cabeleira negra e farta, pele morena escura, altura acima dos seus companheiros, Teófilo Batista de Carvalho logo se destacou, entre os meninos que em 1914 fundaram na Boa Vista o Santa Cruz, como o mais dotado dos rapazes, dentro e fora dos campos daquela época.
Filho de uma família de classe média do bairro da Boa Vista (seu pai era médico), acompanhou os meninos que se reuniam na calçada da Igreja da Santa Cruz nos primeiros momentos daquele início de século. Por motivos outros, não assinou a ata de fundação do seu clube, não se registrando a sua presença na reunião ocorrida na casa do despachante Adolpho Silva, situada no nº 5 da Rua da Mangueira (hoje, Leão Coroado), esquina com a Rua da Alegria, naquela noite de 3 de fevereiro de 1914.
Atendia pelo simpático apelido de Lacraia, ocupava a posição centromédio, logo se transformando em um dos mais renomados artilheiros e, ao mesmo tempo, em capitão e técnico daquele time de iniciantes, que comparecia aos jogos da campina do Derby envergando as cores preta e branca.
Foi o jogador mais popular de sua época, sendo dele o projeto do escudo do Santa Cruz, inspirado na “âncora branca da esperança”, trazendo as cores encarnado, preto e branco, cujo primeiro exemplar fora confeccionado nos Estados Unidos, por encomenda do livreiro Ramiro Costa, e que se mantém, em sua forma primitiva, até os nossos dias.
Segundo o blog do Santa Cruz, “a idéia do escudo nasceu numa ocasião em que um amigo do pai de Lacraia, o livreiro Ramiro Costa, proprietário da secular livraria, que levava seu nome, perguntou ao centromédio, se ele não estava interessado em mandar confeccionar alguns escudos em metal para o Santa Cruz.
Sentindo que o clube precisava de um distintivo que identificasse seus diretores e simpatizantes, não hesitou em responder favoravelmente. Ele mesmo elaborou o desenho, e a encomenda seguiu para os Estados Unidos, pois naquele tempo, tanto no Rio como em São Paulo não haveria facilidades para fazê-los. Pois, no Recife, nem se fala”.
Quando algum tempo depois, Lacraia foi informado da chegada dos escudos, a notícia estava acompanhada da conta, cinco contos de reis. Apenas para tomar o real como parâmetro, digamos, cinco mil reais. Àquela altura, o presidente era Álvaro Ramos Leal, mais tarde médico, pai do também médico e dirigente do clube em meados do século passado, Nilson Ramos Leal. Álvaro seria também avô do ponta-direita Carlinhos (Ramos Leal), de vitoriosa passagem pelo Santa – ainda defendeu o América e o Sport.
Quando foi cientificado do compromisso que teria que ser saldado com Ramiro Costa, Álvaro deixou seu companheiro assustado ao dizer que o assunto seria levado à apreciação da diretoria. Se esta não aprovasse, nada feito. Lacraia que pagasse do seu bolso, uma vez que o clube nada tinha encomendado.
Sem dinheiro para saldar um débito tão alto, o centromédio ficou apreensivo. Porém, para sua tranqüilidade, os demais diretores acharam lindos os escudos, que podiam ser usados no chapéu – um dos costumes da época – com os menores sendo presos à lapela e à gravata. E o Santa pagou a conta.
Mas o nosso Lacraia, com a sua simpatia peculiar, soube brilhar fora de campo, não só como projetista do escudo do Santa Cruz, que os tricolores daquela época usavam, com orgulho, nos chapéus, broches de gravata e lapela, muitos deles confeccionados em ouro cravejado com brilhantes, mas como autor dos versos que apresentavam os jogadores daqueles idos de 1914 a 1917.
Nas ruas a rapaziada já desfilava cantando, atraindo a presença do público feminino, depois de cada conquista no campo do Derby ou no campo do Tramways (na Avenida Malaquias).

Ai meu Deus, que barulho!
Quantas palmas, que horror!
Torcedoras estão contentes,
A vibrar com o tricolor!

Naqueles primeiros anos Teófilo Batista de Carvalho, o nosso Lacraia, descrevia em versos o perfil de cada um dos jogadores do tricolor:

Minha gente não se iluda
Nosso goal-kepper é Ilo Just
Seu apelido é Bicuda.
Atenção Bicuda! Olho na bola!
Cuidado, o inimigo atola!
E não sabeis por onde entrou.
Teu talismã foi perdido,
O teu dente foi partido,
De uma bola que levou

E seguia descrevendo cada um dos jogadores de então, terminando por ele próprio:

Do ingrato Americano
O lugar está ocupando
O rebolo do Tiano [Martiniano Fernandes]
Ai Tiano, center-ford ardiloso
Japonês perigoso,
O primeiro da posição
És um center de primeira
Faz o goal e quantos queira
Assim tenha ocasião

………………………………………….

Eis aqui o tricolor
Que acabo de descrever
Jogador por jogador
Ai que time,
Todos eles desdentados
Uns gorduchos outros cortados
Na metade da altura
Tem também uma Lacraia
Quem pisar em sua raia
A ferrada está segura

E assim o Santa Cruz, que tivera suas cores alvinegras no primeiro ano, transformando-se depois no tricolor com a inclusão do encarnado, passou a ser “o Clube das Multidões dos nossos dias…”
Confessa Givanildo Alves, em seu livro História do Futebol em Pernambuco (1978), que “o Santa continuou sendo amado por pretos e brancos, ricos e pobres, até os dias de hoje. O moreno quase negro Lacraia abrasileirou o futebol pernambucano, até então praticado somente pela elite recifense misturada aos galegos de olhos azuis das companhias inglesas aqui instaladas. O Santa Cruz pôs um ponto final no anglicismo futebolístico reinante e iniciou o estilo de jogo nacional da ginga de corpo, do banho-de-cuia, da bola de efeito, do gol de letra, do drible e da picardia. Um futebol enfim narcisista como o espírito brasileiro. Era a ruptura do velho e a instalação do novo”.


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